quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A meia-página III-B-III-2-b...

... com mais uma referência shakespeariana (esta da minha responsabilidade): na peça "Hamlet", na segunda cena do segundo acto, o famoso protagonista explica a dois "amigos" (que irá depois matar) que «O God, I could be bounded in a nut-shell, and count myself a king of infinite space, were it not that I have bad dreams».

É engraçado verificar a disparidade de sentido patente em algumas traduções desta passagem, que passo a citar sem nomear os tradutores (vivos e mortos):

- «Meu Deus! Podia ver-me confinado ao interior de uma noz e considerar-me rei dos espaços infinitos -, não tivesse eu sonhos agitados».

- «Acharia vasto reino uma casca de noz, se não fossem meus terríveis sonhos».

- «Meu Deus! Eu poderia estar metido numa casca de noz e considerar-me rei dum imenso território, se não tivesse maus sonhos».

- «Meu Deus! Eu poderia estar fechado numa casca de noz e considerar-me rei dos espaços infinitos, se não fossem os maus sonhos que tenho».

- «Ó meu Deus! Eu queria estar encerrado numa casca de noz e supôr-me soberano de um Estado imenso... Mas estes sonhos terríveis tornam-me infeliz».

O caso é o seguinte, restrigindo ao máximo o contexto: confrontados com a visão absolutista do príncipe da dinamarca que considera o seu país uma gigantesca prisão (e até o mundo), os seus amigos (enviados pelo agora Rei, seu tio, que Hamlet desconfia ser culpado do assassínio do seu pai, um fantasma que lhe reclama vingança) não concordam, ao que ele responde que o pensar é que define o bem e o mal, acusando-os portanto implicitamente de não pensar.
Não percebendo ou não querendo perceber a "indirecta" procuram convençê-lo de que ele anda perturbado por causa de uma exagerada e pouco saudável ambição. Segue-se a fala acima traduzida que contém uma poderosa imagem visual: estar preso sem o estar numa singela casca de noz, não fora o que ele ironicamente chama de "maus sonhos", a funesta incubência de vingar o crime acima referido - um trágico dever portanto.

É de notar que, em carta de 14/09/1929 a Ofélia Queirós, Fernando refere-se à importância que tem para si a sua produção literária em termos de "maldição":
«Não sei escrever cartas grandes. Escrevo tanto por obrigação e por maldição, que chego a ter horror a escrever para qualquer fim útil ou agradável».

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